A política francesa na Líbia nos anos 1980-1990
Por: Roland Dumas
Publicado em 19Jan2012 pelo IDC
Roland Dumas, ministro das Relações Exteriores da França nos períodos 1984/1986 e 1988/1993, durante a presidência de François Miterrand, faz sua exposição, tendo ao lado a historiadora e ex-parlamentar russa Natalia Narochnitskaya, atual presidenta da Fundação Perspectiva Histórica em Moscou e também do Instituto Democracia e Cooperação, patrocinador da mesa-redonda de debates sobre "O conflito líbio e o direito internacional", realizada em sua sede em Paris em 08 de dezembro de 2011.
Senhora Presidente,
Quero lhe agradecer por ter me convidado para este magnífico lugar totalmente adequado aos assuntos como esse que nós vamos tratar hoje e me dando a oportunidade de encontrar alguns amigos de longa data assim como novas cabeças que eu descubro com prazer.
Você colocou o problema da discussão moderna do direito internacional e das organizações internacionais em todo o mundo tal como ele é. Você concentrou suas reflexões sobre um problema que você formulou em sua exposição: “a questão surge acerca da intervenção de um governo estrangeiro sobre um outro governo para fazê-lo mudar a sua política ou alterar o seu pessoal".
Isto é realmente o que temos visto nas últimas semanas e que propõe uma reflexão a todos os estudiosos do direito internacional assim como aos observadores internacionais no mundo que se transforma rapidamente. É suficiente olhar para o que aconteceu na Costa do Marfim ou na Líbia nestes últimos tempos para constatar que esse problema é de uma cruel atualidade.
Hoje, a ação na Líbia – já que focamos nossa discussão sobre o protótipo desta ação, desta novidade – tem girado em torno da Resolução 1973, a qual tem sido um grande caso. Esta resolução foi brandida longamente antes da intervenção pois já temos falado em março de 2011. A Resolução 1973 continua a ser um tema de discussão até mesmo entre os não-especialistas.
Pela minha parte, vou concentrar meu propósito em torno de algumas reflexões. Eu gostaria de dar a esta conferência um ponto de vista particular sobre o que tenho vivido ao longo dos últimos quinze anos dentro das relações franco-líbias. Não é nenhum segredo que eu consegui estabelecer relações políticas pessoais entre França e Líbia. Eu, pessoalmente, já efetuei uma boa dezena de viagens a Trípoli e ao sul da Líbia.
Mas primeiro eu gostaria de fazer um balanço da resolução 1973, pois que ela me parece inovadora. Acho que todo o mundo já compreendeu aqui que se trata de uma “embalagem” jurídica internacional. Ela tem tido como pretexto a proteção das populações civis. Nós já conhecíamos a reivindicação do direito de ingerência pelas causas humanitárias, deixando de lado os problemas de ação armada. Foi uma verdadeira inovação tanto mais que não existem nos textos da ONU. Você vai procurar em vão por todas estas disposições relativas à protecção das populações civis.
É bem evidente que a lei é feita para evoluir. Mas o que é contraditório é que a Resolução 1973 tendo tido por objetivo proteger as populações civis foi conduzida na realidade a um conflito jurídico agudo posto que ela se aplicaria a países que não assinaram o ato de ratificação e que não tem concordado com o abandono da sua soberania.
Uma outra reflexão poderia contestar a validade desta resolução: como é que esta ação protetora é transformada em uma ação de eliminação. Eu fui à Líbia no início do conflito, por ocasião dos primeiros bombardeios. Eu visitei hospitais que eram antes radiantes de limpeza e asseio. Eu vi pacientes com as duas pernas cortadas que eram motoristas de táxi, ou outros que trabalhavam em um escritório de seguros.
Dessa forma, eu tenho tido diante de mim a imagem de civis protegidos, mas bombardeados. Mas ela não estava só. Esta Resolução 1973 foi usada para cobrir a intervenção militar, porque ela era uma operação militar que bem aconteceu. Na realidade ela foi votada em condições tais que seu nascimento em si pode ser suspeito.
Eu vou relatar um fenômeno (o que parece mais importante do que tudo isso e que não me diz respeito diretamente: a legitimidade legal da Resolução 1973) que precedeu a ratificação da resolução em questão. Eu apenas farei alusão ao que tenho vivido, primeiro como um simples deputado francês, em seguida como ministro das Relações Exteriores do meu país, depois como conselheiro a serviço do presidente da República, para mostrar a vocês através destes eventos o fio vermelho (o guia, o fio condutor) que levou à essa adoção da Resolução 1973, esta última sendo apenas o chapéu que esconde o todo.
Minhas relações com a Líbia começaram desde o ano de 1983, quando eu estava no Parlamento. Eu já tinha tido algumas amizades de longa data com os argelinos. Um dia recebi um telefonema de um de meus amigos de Argel que eu tinha conhecido na época da guerra na Argélia, que me comunicou que ia vir a Paris pois ele estava encarregado de uma missão que me dizia respeito e sobretudo ao presidente Mitterrand. Eu o recebi e ele disse que estava na posse de uma mensagem enviada pelo coronel Qaddafi. Esse amigo me explicou que Qaddafi desejava ter contatos pessoais diretos com o presidente Mitterrand e eu poderia servir de intermediário.
Eu me fui portanto para o Palácio do Eliseu e informei o Presidente Mitterrand daquela iniciativa do coronel Qaddafi. Depois de ter refletido o Presidente da República me disse que esta iniciativa não era sem interesse e que se eu não estava contra ele me designava para ir encontrar com o coronel Kadafi e perguntar o que ele queria.
É assim que eu conheci pela primeira vez o coronel Qaddafi. Depois eu fiz três viagens secretas, na sequência, algumas foram peculiares, mas sempre úteis. O Presidente da República tinha colocado à minha disposição uma aeronave com piloto pessoal. Antes de empreender a quarta viagem eu estava de férias na Córsega. Eu recebi um telefonema e me disseram que o coronel Qaddafi queria me rever. Eu telefonei então para o presidente Mitterrand e me enviaram um avião com a bandeira tricolor francesa. Eu hesitei muito em tomá-lo, mas o tempo pressionando eu então o tomei para ir para a Líbia.
Evidentemente, vinte e quatro horas após o avião francês desembarcar em Trípoli esta informação tornara-se amplamente pública. Depois eu aprendi que um pequeno agente do aeroporto de Trípoli deu informações para a Embaixada Britânica. Foi uma lição para lembrar. Isso me custou censura da parte do embaixador francês na Líbia por causa dessas quatro viagens sem dar um sinal para a Embaixada da França.
Quando eu vi o coronel Qaddafi pela primeira vez, ele ocupava o Chade. Sua preocupação era de ver a concordância da República sobre a substituição do governo do Chade que ele dizia que era hostil (o governo de Hissène Habré). Depois eu descobri que o atual presidente do Chade, (Presidente Idriss Deby Into) era o objeto de sua escolha na época.
Eu fui para a Líbia com a idéia de convencê-lo da necessidade de desocupar o Chade. Nós tivemos uma discussão bastante viva, e finalmente eu tinha um acordo verbal com ele indicando que ele evacuaria suas tropas do Chade, quando ele estabeleceria relações pacíficas naquela região. Você compreende bem que essa preocupação que nós tínhamos afetava todos os países africanos. Qaddafi não era uma "criança do côro" (calmo e bem comportado)! Então deixá-lo ocupar o Chade, que era um país amigo, era ao mesmo tempo deixar pairar uma ameaça sobre os outros países da África. Eu me lembro que alguns políticos africanos foram muito turbulentos sobre a questão da conciliação do coronel Qaddafi. Por razões estratégicas e pelo fato da política internacional de amizade com os países africanos, queríamos contê-lo.
Finalmente, minhas primeiras viagens foram seguidas de algumas outras e, no cômputo final, obtivemos a evacuação do Chade pacificamente. O Presidente Mitterrand em sinal de recompensa aceitou conhecer pessoalmente o coronel Qaddafi. Este que era exatamente o objetivo de Qaddafi.
Foi muito interessante ver a quem obedecia o líder líbio. Ele admirava muito a pessoa de Gamal Abdel Nasser e da conversa que tive com Qaddafi, eu havia compreendido que Nasser lhe tinha aconselhado a manter amizade com a França. Tornou-se uma obsessão para ele, malgrado o fato de que tinha essa "bola do Chade", em direção do qual nós mesmos enviamos tropas.
Finalmente, ele evacua suas tropas do Chade e o encontro entre os chefes de Estado teve lugar. Mas ele não se desenrolou em Paris - como outros o farão, na minha opinião desajeitadamente, depois disso - mas em Creta.
Primeiro exemplo. Resolvemos este problema de forma muito inteligente.
Segundo exemplo. Quando eu era ministro no governo, por volta do ano 1985, Mitterrand disse que era necessário eu fazer uma viagem na região: ir ao Oriente Próximo e passar pelo "meu bravo amigo" – brincou ele muitas vezes – o coronel Qaddafi.
Eu quero mostrar a vocês a continuidade da ação e do pensamento dos Estados Unidos da América, nesse caso da Líbia. Em 1985-86 o embaixador dos EUA me pediu um encontro para me apresentar uma delegação do Pentágono. Eles vieram com mapas para me mostrar que o coronel Qaddafi preparava armas químicas e nucleares. Eles estavam munidos com equipamentos de monitoramento e imagens sofisticados. Eles me mostraram com muitos detalhes as usinas e as fábricas. Isto foi durante duas horas. Seu objetivo era – preparem-se! – me persuadir de que eu persuadisse por minha vez o Presidente da República a bombardear a Líbia e o coronel Qaddafi porque tornara-se perigoso para o Ocidente. Nesse momento eu estava um pouco irritado e disse ao chefe da delegação dos EUA que eu tinha levado em conta as suas preocupações e que eu iria falar com o Presidente da República. Mas antes de sair eu fiz uma pergunta: "Qaddafi é um terror, ok! Isto pode se conceber. Você quer que a gente o destrua. Mas, então, me explique porque todos os cidadãos de nacionalidade americana podem entrar sem visto no território da Líbia, para negociar e lidar com petróleo?".
Os militares dos EUA começaram a me explicar que se tratava de indivíduos, enquanto que o governo dos Estados Unidos vê em Qaddafi um diabo e contam nesse caso com a França. Eu respondi que eles contavam errado com Paris e que eu não ia dar conselhos ao Presidente da República para engajar o exército francês na África do Norte. Mas já era o segundo alerta, sendo o primeiro o de 1983.
O terceiro alerta foi muito mais específico. Passados dois anos, eu estava então ainda no governo, o barulho das botas ressoa na esquina. Pedi a Mitterrand para ir à Líbia ver o coronel Qaddafi. Eu retornei para lá e tivemos uma conversa dura, no deserto, ao anoitecer. Fiquei bastante surpreso com a atitude de Qaddafi que tinha evacuado suas tropas do Chade, mas que permanecia desde então um objeto de ameaças, imprecisas mas constantes.
Retornei para a França e Mitterrand imediatamente me questionou sobre os resultados da minha missão na Líbia porque ele recebera no dia do meu regresso da Líbia uma carta do presidente Bush (Pai) dentro da qual esse último pedido de novo de bombardear a Líbia. Depois de escutar Mitterrand, eu respondi a Washington que não era questão de bombardear o país norte Africano sob qualquer pretexto que fosse. As coisas então se acalmaram e as relações foram retomadas.
O quarto alerta – e na minha opinião o mais sintomático, porque você vai ver os estragos que ele ocasionou – se desenrolou em 1988-89, quando eu não estava mais no governo. Era um período de coabitação e o primeiro-ministro era Jacques Chirac. O Presidente da República me chama de novo porque a França torna-se novamente objeto de demanda, neste caso vinda da OTAN. A OTAN pedia permissão para sobrevoar o território do Hexágono (a França) a fim de atacar a Líbia com uma centena de aviões. Eu aconselhei o Presidente da República a recusar esse pedido, o que o chefe de Estado fez em seguida. Os americanos e a NATO ficaram furiosos porque no caso da ausência de autorização do sobrevôo, os aviões deviam fazer a volta por Gibraltar e a Espanha. Esse desvio apresentava ao menos 20 horas de atraso por causa das escalas obrigatórias e as perdas de gasolina.
Após a recusa da França as formações aéreas da OTAN passaram pelo sul de Espanha. Os otanienses chegaram em um lugar onde eles sabiam onde estava o coronel Qaddafi. Mais tarde eu visitei este lugar que foi completamente destruído. É lá que as crianças de Qaddafi foram mortas, desde então este lugar é mantido como um mausoléu que se podia até mesmo visitar há alguns meses (atrás).
Assim, em quatro ocasiões a tentativa foi feita com a França para obter o seu acordo de patrocinar a cruzada armada contra Qaddafi com a idéia de destruí-lo. Mas o que se passa hoje, quando os novos políticos chegaram ao poder na França? Refiro-me naturalmente ao Sr. Sarkozy. Por negociações diversas sobre as quais sempre não temos a verdadeira explicação – porque Gaddafi não há muito tempo foi recebido em Paris com grande pompa e com as honras militares – alguns meses depois a França votou pela Resolução 1973.
Não é possível separar o voto dessa resolução de todos os eventos que o antecederam, durante dezoito anos de política francesa, nos quais eu fui parte envolvida. O que não se passou no nosso tempo se passou com a nova Presidência da República, porque os americanos sempre mantiveram a idéia de se servir da OTAN, ao que a França resistiu durante os anos 1980-1990 (a questão da manipulação da NATO e a sua transformação permanecendo um tema a debater à parte). Por fim essa idéia triunfou. O drama principal deste triunfo não está no fato de que a França deu seu acordo para o sobrevôo de seu território e nem também porque a forças aéreas e navais participaram desta operação militar. Ele consiste de um outro fenômeno: a França foi na cabeça da intervenção na Líbia, e aqui o caso histórico é surpreendente!
Estou certo de que esta reviravolta permanecerá lembrada na história da diplomacia internacional.
É verdade que Qaddafi não era um mimo. Mas quando vemos o desenrolar atual da situação na Líbia, fazemos a pergunta "O que o futuro poderá ser, comparado ao passado? Qual vai ser a partilha de cadeiras na Líbia?"
Infelizmente, os ocidentais não fazem estas perguntas porque eles só pensam no petróleo.
No entanto, o regime de Benghazi não deu presentes à França. Hoje as concessões não tem sido dadas como à Itália. Por isso, mesmo em termos de hidrocarbonetos, a idéia de intervir na Líbia ainda assim não se justifica.
Para concluir, eu notarei que está em processo de render a alma o equilíbrio de forças que estava em vigor até que Gorbachev chegasse ao poder na Rússia e ao desmantelamento do Pacto de Varsóvia – enquanto seu homólogo ocidental, a OTAN, ainda existe!.
E o exemplo da Líbia nos mostra que hoje vivemos em um contexto internacional dos mais dolorosos e mais perigosos.
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